13.3.05

Pelo começo

Quinze meses se passaram e o rei está nu. A frágil política econômica não resistiu a quinze minutos de entrevista do Sr. Greenspan. Daqui para frente, muito pouco se poderá fazer e, mais do que nunca, a ortodoxia usará seu arsenal para sufocar de vez a nossa combalida economia. Restarão as metáforas e o tempo.
Mas, considerando o contexto em que se deu a vitória do Lula, a crise econômica parece ser apenas a gota d’água de uma crise mais profunda, de aguda desilusão política no país. O eventual fracasso de um governo do PT é muito mais do que o tropeço de um partido ou de um programa econômico. Não afetará somente nossa vida daqui por diante, mas marcará drasticamente a nossa vida pretérita, nossos tantos anos de construção de uma alternativa para este país.
Como demonstra muitas vezes a história, o sentido das coisas, o rumo dos processos sociais e políticos, são definidos de frente para trás. São os eventos futuros que magicamente dão sentido às trajetórias do passado e estas só podem ser plenamente compreendidas a partir do seu desfecho; sem ele, não seriam mais do que eventos fortuitos, distribuídos ao acaso, ao lado de tantos outros.
É como quando finalmente damos o primeiro beijo na namorada. Resgatando na memória, identificamos naquela festa da escola, ou naquele olhar no retrovisor, um encanto que só poderia desaguar no grande amor de hoje. Ou também no futebol, quando tabelamos desde o nosso campo de defesa numa triangulação predestinada a encher a rede, num belíssimo gol de placa. Mas quantos foram as tabelinhas desperdiçadas pelo centroavante fominha? E quantos olhares em quantos retrovisores não passaram de tentativas mal sucedidas?
Para que nossa arte, nossa labuta, faça algum sentido, é imprescindível que de algum jeito consigamos conectar o presente a nossas ambições de ontem. Se não para construirmos o futuro, como costumamos crer, talvez para amalgamar o passado.
Pois é com isto que o governo do PT e o presidente Lula estão lidando. Tenhamos participado mais ou menos ativamente da política nos últimos 30 anos, temos que reconhecer que o PT foi o portador da caneta que parecia predestinada a ligar os pontos de nossa história. Os chumbos da ditadura, as manifestações de rua, o Julinho de Adelaide, a luta pelas Diretas-Já, os desenhos do Henfil, os esforços da Constituinte, o Dr. Ulisses, o impeachement de Collor, o sufoco do FHC, todo este amontoado de vida só comporia um roteiro inteligível se tivéssemos finalmente desaguado em algum mar. Aquele leito caudaloso, expressão talvez das duras escarpas que nos acompanharam ao longo do tempo, não poderia terminar assim, absorvido pela areia da costa, empapuçando um mangue que parece não ter fim. Sem um mar, não haverá rio, nem córregos, nem nascentes.

Marcelo Manzano
[publicado na revista Caros Amigos de Março de 2004]